Joker (2019) - Da comédia ao caos vilanesco
Sinopse: Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é palhaço de profissão. Vive sozinho com a mãe. Sonha ser comediante. Mas Gotham é uma cidade de caos e confusão, que ignora os solitários. Arthur sente-se assim, até conhecer a sensação de ser visto e admirado. E encontra um novo caminho para a sua vida.
A maioria olha para o Joker apenas como o vilão do Batman; o palhaço que gosta de rir, dançar e matar pessoas em Gotham City. É o assassino excêntrico, aquele meio amalucado que podia parecer apenas doido, mas na verdade parece só ser má pessoa que mata sem passar e a rir à gargalhada. É o amante do caos. Foi assim o de Jack Nicholson. É assim o de Mark Hammill (ou a sua voz). Foram assim os de Jared Leto e Heath Ledger que, até à data de hoje, continua a ser um dos mais elogiados e extravagantes, loucos mesmo.
Mas hoje há um novo Joker. Um Joker ainda mais perturbado, negro e caótico do que qualquer outro. Hoje há a sua origem.
O filme de Todd Phillips é mais sobre Arthur, o homem solitário carregado de camadas e camadas de complexidade que vai encontrar uma vocação do caos. É Arthur o centro da história, a sua origem e tudo o que o levou a encontrar num cabelo verde e maquilhagem de palhaço o escape que precisava para ser verdadeiramente feliz.
Eu não sabia que tinha havido uma altura da existência de Joker que, não só era um menino da mama solitário, como ainda acalentava o sonho de ser comediante; queria fazer stand up. Já sabíamos, no entanto, que gostava de trazer sorrisos a cada alma - sejam eles metafóricos, reais ou apenas uma ironia no seguimento das suas ações.
O que este Joker consegue é mostrar-nos estas camadas e ligações que o transformaram no vilão dos vilões, de uma forma visceralmente desconcertante.
O que Todd Phillips e Joaquin Phoenix conseguiram foi um filme tão incomodativo que fica connosco. É duro, carregado de uma sensação de incómodo que ainda agora, horas depois de assistir ao filme, não consegui bem descrever. Não é asco, nem resistência em conseguir gostar; é antes uma comichão, daquelas que estamos a sentir mas sabemos que não podemos coçar - podemos não estar a conseguir lidar com o que estamos a ver, com a magreza de Arthur ou as situações em que se encontra, mas não conseguimos tirar os olhos do ecrã.
Há um ambiente propício a isso, que felizmente houve sempre em todas (ou quase todas) as representações de Gotham. É uma cidade escura e muito suja, com pessoas de moral questionável em cada esquina. É uma cidade de pecado e crime, de doenças mentais e conhecida pela sua capacidade de criar um novo doente mental a cada hora.
E as doenças mentais, se bem se recordam do mundo em que vivemos, ainda não são fáceis de digerir e, sobretudo aceitar. A dura realidade, a de Arthur e a deste mundo, é que a sociedade não aceita desvios.
Talvez o que custe seja este choque com a realidade, este paralelismo que conseguimos fazer entre o que acontece em Gotham e o que muitas vezes vemos acontecer à nossa porta. De entre todos os malucos que pegam numa pistola e começam a disparar pela rua fora, um deles não podia estar vestido de palhaço? Provavelmente.
O que incomoda também é a crueza com que Phoenix se torna neste Joker. Todos nos lembramos das versões anteriores desta personagem, das suas dimensões e facetas, só que Phoenix é toda uma nova roupagem. Ele é Arthur no seu pior, mas também é o Joker no seu pico de excentricidade. Ele ri, ele dança, ele convence-nos de que é este ser perturbado e demente que temos à nossa frente e confesso-vos, há um misto de pena, asco e admiração por aquilo que consegue. Não só transmitir-nos, porque isso é um trabalho dramático de um ator, mas sim naquilo que se torna.
Phoenix é o Joker no seu âmago. Viaja até ao centro das suas motivações e leva-nos com ele numa espiral de negatividade da qual não conseguimos fugir - e nem queremos, queremos ver o fim, o fundo do poço.
É incrível como a sua direção e o argumento da história vem de alguém que associamos por norma à comédia. Phillips, aqui no papel de realizador e co-argumentista, foi o homem que nos trouxe A Ressaca, a versão de 2004 de Starsky & Hutch, a história de Borat… Nos últimos anos, tem sido associado a um tipo de humor entre o non-sense e o inteligente, e com mestria tem conseguido criar enredos cómicos que nos prendem pelo seu caos.
Bem, esta era a minha primeira impressão. Mas enquanto escrevi este último parágrafo (e juro que foi no momento em que escrevi aquele parágrafo), nota-se tão bem como é que a sua visão é tão acertada para esta história. O Joker tem uma história de caos, mas também de comédia; ele quer fazer-nos rir mas não consegue, e quer ser visto mas não chama a atenção. O Joker é o espectro de tudo o que podia ter corrido mal… e correu.
Concluindo, Joker não é o filme de banda desenhada a que estamos acostumados, não existem capas esvoaçantes e discursos carregados de esperança pelo amanhã. É um filme duro sobre um homem perturbado e doente, que por acaso gosta de se vestir de palhaço. Os pequenos cameos? São isso mesmo, cameos para nos encher o olho e fazer abrir a boca de espanto.
Mas Joker é um filme à parte de todo o lore e corro o risco de dizer que o facto de se chamar Joker é mais marketing do que história. A personagem quase se torna uma desculpa para encararmos as consequências de uma sociedade que vira os olhos aquilo que acha mais desagradável, aos loucos e diferentes. E ainda bem, porque de filmes de banda desenhada já todos estamos fartos, não é?
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