After Life - Um ensaio sobre a vida, o amor e tudo o que está pelo meio
Era uma vez um senhor chamado Tony. Um dia, conheceu uma senhora chamada Lisa e, entre aventuras e desventuas, apaixonaram-se. Casaram. Viveram momentos muito felizes. Mas quando Lisa é diagnosticada com cancro e acaba por falecer, esses momentos passam apenas a ser memórias gravadas e vistas e revistas vezes sem conta num ecrã de computador. Nesse dia, Tony começa a questionar se vale mesmo a pena ser boa pessoa se há sempre um dia que todos morremos.
De uma forma muito simples e meio tosca, esta é a história de After Life, uma série de 2019 escrita, realizada e protagonizada por Ricky Gervais. Não é de todo o tipo de argumento que vemos a ser escrito por Gervais, mas é talvez dos mais orgânicos do britânico.
Para quem viu a primeira temporada, a segunda acabou de estrear no Netflix, pronta para nos arrancar lágrimas e gargalhadas em igual medida.
É um pouco redutor dizer que After Life é apenas uma série sobre uma história de amor e um homem deprimido. Claro que o é, mas consegue ser da mesma forma uma metáfora para o que valorizamos na nossa vida, o que nos move e o que nos influencia, ao ponto de questionarmos quem somos e o que somos quando essas forças inesperadamente somem.
Sem que estivesse a contar com isso, After Life mexeu demasiado comigo - já o tinha feito em 2019, voltou a fazê-lo agora. Sempre com o mesmo registo e sempre com a mesma simplicidade deliciosa que é a vida numa pequena cidade britânica, chorei, ri, refleti e cheguei a conclusões sobre mim que nem sequer me tinha atrevido ainda a pensar.
Sabem quando nos dizem que não devemos viver em função de alguém? Que a obsessão pode ser pouco saudável, que não devemos nunca deixar-nos levar pela dependência de terceiros - isto sobretudo quando somos mulheres a lutar pela independência feminina?
Questionei tudo isso. Na verdade, já o questiono há vários anos. Eu dependo das minhas relações - das amorosas, das familiares, das de amizade. Elas formam-me, tornam-me naquilo que sou, ajudam-me a perceber para onde ir e muitas vezes até o que pensar, porque acredito que são as nossas vivências e experiências que nos tornam quem somos. Sou, saudavelmente, dependente do homem que vive comigo todos os dias - o que torna a história de Tony muito mais premente.
Não, eu não sei o que faria sem ele. Continuo a preferir perguntar-lhe se temos legumes no frigorífico do que ver pelos meus olhos, ou se sabe onde está guardada a minha camisa preferida. Confio de tal forma naquilo que sou com ele, que as suas palavras são parte integrante das minhas decisões.
Em certa medida, é o que Gervais nos conta entre cenas mais sarcáticas, outras mais dramáticas. A história de Tony e Lisa é o retrato em como estas pequenas dependências nos ajudam a olhar para os dias com alegria, com tristeza ou apenas com tolerância. Toleramos a sociedade, os seus obstáculos e estupidezes porque, no fim do dia, sabemos que há sempre alguém que nos faz pensar que vale a pena sobreviver a cada minuto que passa.
Encontrei em After Life a conclusão de que esta ideia de que somos construídos por pequenos pedaços de outros não deve nunca ser sinal de fraqueza. Faz-nos, muitas vezes, mais fortes por termos de lidar com a ausência de uma parte de nós quando, mais cedo ou mais tarde, cessa de existir. Somos um puzzle colado por peças e peças de vidas e realidades, que nos juntam aos que nos rodeiam.
E não deve haver mal nenhum nisso.
Hé beleza numa história assim, sobretudo quando é tão bem contada e tão deliciosamente tratada. Com um argumento certeiro, que facil e organicamente nos leva das lágrimas às gargalhadas, é na sua história e nos seus diálogos que After Life nos prende. Gervais consegue levar-nos numa viagem incrível sem precisar de artifícios ou luzes de néon; há uma certa magia na forma como transforma uma pequena cidade britânica no palco de uma série que quase se parece com uma peça de teatro.
O facto dos dias de Tony serem sempre tão semelhantes e cheios de paralelismo mostra-nos a repetição dos seus dias, a incapacidade que tem de sentir prazer com as mudanças e surpresas diárias.
E, em igual medida, a própria repetição dos nossos dias.
No fim de contas, After Life é uma história de beleza singela, com cenários singelos e interpretações doces e agressivas ao mesmo tempo. Com o seu toque britânico, encontramos aqui (mais) uma prova em como nem todas as comédia devem ter piadas de nos levar às lágrimas a cada minuto, nem tão pouco custa brincar com assuntos sérios - se a morte for sequer um assunto sério. Se o humor não tem limites, não o deve ter também a forma como a comédia nos é trazida e Gervais demonstra novamente que os seus formatos não são constantes; são de acordo com as suas mensagens e os seus valores.
After Life é uma amostra das escritas mais simples e profundas que já tive a sorte de assistir, sempre com comédia. Haja mais, pela nossa saúde.
A segunda temporada de After Life já está disponível na plataforma de streaming Netflix.