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Fui ao Cinema... E não comi pipocas!

As aventuras e desventuras de uma miúda que se alimenta de histórias cinematográficas.

Fui ao Cinema... E não comi pipocas!

As aventuras e desventuras de uma miúda que se alimenta de histórias cinematográficas.

Zombieland 2: Tiro Duplo (2019) - Que bom é matar Zombies

29.10.19 | Maria Juana

Sinopse: Passaram 10 anos desde que Tallahassee (Woody Harrelson), Columbus (Jesse Eisenberg), Wichita (Emma Stone) e Little Rock (Abigail Breslin) se juntaram e formaram equipa contra o vírus zombie que assolapou o mundo. Agora, enfrentam novos zombies, sobreviventes e o que significa mesmo ser uma família…

É caso para dizer que em equipa vencedora, não se mexe - muitos treinadores de futebol tentam seguir esta máxima sem sucesso. Felizmente, não foi o caso de Zombieland, que 10 anos depois da estreia do primeiro filme continua com o seu… digamos je ne sais quois tão característico.

Passaram 10 anos, é verdade, desde que ficámos a conhecer os 4 protagonistas e as circunstâncias em que se encontraram. Foram 10 anos em que o vírus zombie se propagou, mas que também a população sobrevivente se reuniu e aprendeu o que fazer para fugir à praga. E foram 10 anos que pareceram não passar, porque em nenhuma altura dos 1h39 minutos de duração do filme ficamos com a sensação de que alguma coisa mudou.

Sim, isso é uma coisa boa. Zombieland 2 é tudo o que queremos de uma sequela: uma continuação do filme original, mantendo o seu cunho especial e aquilo que nos encantou, sem trazer a sua novidade. Aqui é verdade que o novo é mais trazido no campo do enredo e no crescimento dos personagens do que propriamente algo mais inovador, mas não interessa - não há dúvida de que voltámos à Zombieland.

O primeiro filme tornou-se um quase clássico da comédia com zombies por ser extremamente caótico e, claro, cómico ao mesmo tempo. Tem os elementos clássicos da comédia, como colocar personagens antagónicas a formar equipa ou jorros de sangue a viajarem contra a câmara, mas também tem um encanto muito seu. O ritmo constante de diálogo, o ambiente que criado para a Zombieland e os seus pequenos cameos tornaram uma comédia clássica mais num gore moderno e cómico - se é que existe tal coisa.

Tiro Duplo (felizmente, mais uma vez) traz tudo de volta. Columbus continua com um diálogo errante, continua o estereótipo do nerd que contrasta com o hillbilly Tallahassee e com a namorada bad ass que é Wichita. O tom gore e carnívoro não falta, bem como os momentos de comédia fácil aos quais é impossível resistir. E temos um enredo consistente, que faz todo o sentido como continuação do filme anterior sem ficarmos com uma sensação de ‘Eiishh isso é impossível’.

Foi bem possível porque, lá está, em equipa vencedora não se mexe. Aqui podíamos estar a referir-nos apenas ao grupo de protagonistas que aceitou regressar para a sequela, mas é pouco: de regresso estão também o realizador Ruben Fleischer e os co-argumentistas Rhett Reese e Paul Wernick, a quem se juntou Dave Callaham.

Isto permite consistência e um conhecimento bem distinto do que é a Zombieland e do que precisa para ser o clássico que foi antes. Não que seja um clássico espetacular que vos vai fazer esquecer todos os outros filmes de comédia - não, mas é que este está mesmo bem escrito e tem mesmo piada. E zombies!

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20 anos de Fight Club, 20 anos do melhor filme de sempre

24.10.19 | Maria Juana

A forma como olhamos para o Cinema é sempre mais ou menos linear. São histórias, são formas de entretenimento que vemos com gosto e satisfação. Às vezes rimos, outras choramos e chegamos até a levar pontapés no estômago quando somos confrontados com a realidade escura e fria que é o mundo. Depreendemos que, a bem ou a mal, o Cinema é sempre este espelho da realidade que se tornou veículo de mensagens, ideias e princípios. Uma forma de cultura, no fundo.

Fight Club começou como livro, nas mãos de Chuck Palahniuk, e só dois anos depois do seu lançamento é que foi lançado como filme realizado por David Fincher. Já em livro tinha sido a raiva escondida de uma geração presa a uma sociedade consumista, sempre levada a comprar mais e mais, uma geação insatisfeita com a sua existência. A sua transposição para filme elevou tudo isso ao quadrado, juntando o toque visual que precisava e na altura certa: o fim do milénio, quando todos achavam que o mundo ia acabar ao tocar as 12 badaladas de 31 de dezembro de 1999.

Dois meses antes do fim do mundo aparece este filme meio dark, meio estranho, com um elenco meio romântico, meio estranho, que traz cá para fora toda a angústia e receios que esta geração tinha tentado esconder durante toda a década.

Por esta altura eu ainda passava os tempos livres a ver filmes da Disney. Já tinha visto o meu primeiro filme no cinema e já vivia fascinada por este mundo de salas escuras com baldes de pipocas e um ecrã gigante à minha frente, mas apreciava mais os desenhos animados do que as histórias filosóficas.

Também não sabia nesta altura que tinha estreado um dos filmes que mais moldou a minha forma de lidar e pensar nesta arte. Foram precisos muitos anos e muitos filmes para que percebesse em toda a sua plenitude o que isto do Cinema tem, este seu poder de nos fascinar e moldar ao ponto de mexer com as nossas entranhas - nem o Harry Potter tinha tido esse poder.

 

Para mim, Fight Club foi a ponta de um iceberg que há muito queria explodir. Está no pico da adolescência revoltada, quando queremos salvar o mundo dos mauzões e vilões de fato bons-falantes que elegemos. Estava naquela fase em que tudo me parecia produto da revolução consumista, em que tudo merecia uma manifestação e uma luta pelos nossos direitos. Também estava na fase da Geração à Rasca, aquela que sabe que o seu futuro não vai ter tudo aquilo que lhe foi prometido e está muito, muito chateada.

É claro que Fight Club teria algum tipo de influência numa jovem impressionável com eu, era impossível não ter. Ainda assim, o que mais me chocou foi a compreensão de que a forma como um filme é dirigido e interpretado faz toda a diferença.

Foi com o trabalho de David Fincher que comecei a perceber que isto de fazer filmes não é só pegar numa câmara e gravar a peça de teatro que está à nossa frente. Foi com ele e com o seu Fight Club, com o elenco que escolheu e com esta história tão exaltante, que me apercebi que existem estilos, ângulos, cortes, cinematografias e argumentos que fazem toda a diferença, e que marcam um filme de tal forma que a sua mensagem poderá ser completamente diferente quando transmitida por duas pessoas.

Fiquei impressionada com a forma como lidou com a raiva contida e exaltada que havia na história. Abri a boca de espanto quando vi as peças do puzzle encaixarem de uma forma, quando a luz bateu num cara e não na outra, quando a câmara pulou de um lado para o outro, tal como eu queria ter pulado. Deixei-me colada à cadeira quando acabou e tudo fazia sentido, tudo estava certo, bonito e encantado na minha cabeça. Tinha acabado de ver o melhor filme que alguma vez tinha visto.

Desde então já vi mais filmes, alguns deles muito bons e com este olhar mais atento. Já tive a oportunidade e a sorte de ver filmes como se fosse esta primeira vez, em que me impressiono com tudo o que está à minha frente. Mas este continua a ser o melhor filme de sempre.

Já tentei várias vezes tentar pôr no papel porque é que o acho assim. Escrevi argumentos, tentei montá-los e criar um texto coerente só que me falha sempre a palavra.

Acredito que seja porque foi o meu primeiro amor, e tive a sorte de ter um primeiro amor tão forte e potente. Não há dúvidas de que Fight Club é tecnicamente um filme bem conseguido. Além de ter uma realização de génio e um argumento bem escrito e delineado, as suas interpretações são de cortar a respiração de tão intensas que se tornam. Toda a história é intensa e ainda assim conseguimos navegar suavemente, ficando chateados com eles mas também reconhecendo a sua loucura a cada passo.

Só que para mim foi aquele abrir de olhos que estava à espera e que ainda hoje olho com reverência. Além de toda a parte técnica e cinematográfica, deslumbrou-me o Cinema e o poder que pode ter.

Ainda não sei se foi desta que consegui deitar cá para fora tudo o que vai cá dentro. Uma coisa é certa: já passaram 20 anos. 20 anos do melhor filme de sempre.

Obrigada!

 

The Laundromat (2019) - Os Panana Papers explicados em filme

20.10.19 | Maria Juana

Sinopse: Em 2016, milhares e milhares de documentos da firma Mossack Fonseca foram expostos na imprensa internacional com provas de que figuras proeminentes da sociedade usavam contas offshore e empresas fantasma para fugir aos impostos. Esta é a história de como é que isso foi possível, contada pelos próprios Mossack (Gary Oldman) e Fonseca (Antonio Banderas) e por Elle Martin (Meryl Streep), uma vítima colateral.

A produção Netflix estreou esta sexta-feira na plataforma e já estava envolta em polémica: depois de algumas semanas em salas de cinema selecionadas, Jürgen Mossack e Ramón Fonseca (os verdadeiros) processaram a Netflix por mancharem o seu bom nome. O caso, como podem ter calculado, não deu em nada e o filme ficou disponível para todos assistirmos e compreendermos melhor esta polémica.

Não é fácil compreender. A polémica pode ter disparado apenas em 2016, mas foram anos e anos e anos de papelada e evasões, com nomes estranhos e complicados e curvas e contracurvas de formas de tentar fugir ao que poderia ser considerado legal - mas que na verdade estava totalmente dentro da lei.

A história de Laundromat é verdadeira. Mossack e Fonseca existem - são dois advogados que criaram uma empresa para dar privacidade a pessoas com dinheiro (privacidade essa que tanto podia funcionar para os mais honestos e com bom coração, como para os criminosos e que tinham mesmo muito a esconder). Aqui, são eles os narradores, quem não só explica o que aconteceu como nos levam numa viagem ao negócio que construíram, explicando e fazendo compreender as suas miudezas e estranhezas.

Já Elle é um bode expiatório, a parte fictícia do argumento que nos ajuda a perceber como é que as maquinações de empresas como as de Mossack Fonseca afetam o povinho. Elle luta para compreender como é que a seguradora da empresa de cruzeiros no qual o marido morreu não se responsabiliza pela sua morte e a de mais 20 pessoas. Ela segue os papéis e investiga o que há por trás, levando-nos consigo.

Steven Soderbergh está ao leme de um filme que tem um quê de documentário. Com um argumento baseado no livro de Jake Bernstein, criou um puzzle de planos, cenários e personagens que quando encaixados, mesmo que pareçam de mundos completamente diferentes, ajudam-nos a criar uma imagem do que aconteceu em 2016. Sempre com a narração e o acompanhamento de Oldman e Banderas (na pele dos dois advogados), há uma narrativa linear que tenta utilizar o máximo de recursos visuais para que o filme funcione quase como um Panama Papers para totós.

No fundo, é quase uma crítica ao sistema financeiro e bancário criado no mundo capitalista e que continua a ter repercussões na vida dos cidadãos dos Estados Unidos da América. Apesar deste ser um flagelo mundial, fica muito patente que um dos objetivos de Laundromat é abrir os olhos da sociedade norte-americana, mostrando com clareza como é que negócios como este afetam o país e a sua economia.

Mas mais do que a crítica social, The Laaundromat é um exercício narrativo e argumentístico - sim, parece que estou a inventar palavras, mas é com essa ideia com que ficamos. Apesar de ser o estilo de Soderbergh a conferir um estilo à sequência da ação, é sobretudo o argumento de Scott Z. Burns que nos faz percorrer cada nome, crime e incompreensão que a história possa trazer de uma forma muito simples e automática.

É também um festim para os olhos, carregado de um elenco de topo com nomes e caras que todos conhecemos - mesmo, como o caso de Sharon Stone, que apareçam apenas 2 minutos. O trio de protagonistas ganha um claro destaque pelo seu cariz narrativo, mas existe quase a sensação de que não existem papéis secundários, antes uma importância própria dada a cada uma das personagens.

Não é um filme que quebre ou crie novas regras narrativas, mas antes que se sabe aproveitar de um argumento bem escrito e de uma história com potencial de arregalar a curiosidade. Ainda hoje estão a ser revelados documentos e nomes envolvidos no escândalo dos Panama Papers e a estreia de The Laundromat é com certeza mais uma farpa para que casos semelhantes continuem a ser tornados públicos.

Nesse aspeto, o filme comete a proeza de conseguir explicar as suas repercussões de forma clara. É natural que Mossack e Fonseca (que no decorrer do escândalo estiveram 3 meses presos e fecharam a firma no Panamá apenas no início deste ano) considerem que o filme os coloca numa posição de vilão que não têm. Mas também é claro que as ações criminosas não eram totalmente do seu conhecimento - mesmo que soubessem que era uma possibilidade.

Há ainda uma tinta a gastar no assunto. E muita fita, se outros seguirem o exemplo de Soderbergh.

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The Politician - Uma série de política para teenagers

16.10.19 | Maria Juana

Disclaimer: esta é uma série de Ryan Murphy. Isso significa que os seus acontecimento vão ser exagerados, que existe uma forte possibilidade de alguém começar a cantar e que vão acontecer coisas que simplesmente não acontecem na vida real.

Disclaimer número 2: na maior parte das vezes, isso é o que faz uma série do Ryan Murphy tão interessante.

Se têm vivido debaixo de uma pedra nas últimas semanas ou não têm uma subscrição Netflix que vos envia emails todos os dias com as novas séries disponíveis, é possível que The Politician vos tenha passado ao lado. Também é possível que não tenham dado conta da sua estreia se preferem aqueles dramas bem pesados estilo Mindhunter, ou as séries de que toda a gente fala e gosta.

Eu só dei conta da sua existência graças a uma story de Instagram.

Não há mal nenhum nisso, mas aqui estou eu a dar-vos conta de que existe, dizendo já à cabeça que existem séries melhores e mais interessantes. Mas precisamos de diversidade, não é?

Sobretudo no clima em que vivemos, em que os resultados às eleições são questionados, em que circulam petições para retirar do Parlamento representantes eleitos e nos Estados Unidos começa mais uma corrida à Casa Branca em clima de tensão, The Politician chega para nos mostrar que isto da política é muito mais simples do que parece. É, na maioria dos casos, uma corrida ao poder, e ao poder apenas.

 

The Politician conta-nos a história de Payton Hobart (Ben Platt), um jovem norte-americano que toda a sua vida sonhou ser Presidente dos Estados Unidos. Para isso, estudou e seguiu os passos de todos aqueles que se tornaram presidentes religiosamente, incluindo candidatando-se à Universidade de Harvard e ao cargo de Presidente da Associações de Estudantes no seu último ano de ensino secundário. A série debruça-se sobre esta eleição, mostrando de forma leve e pouco complicada como é que funcionam as campanhas eleitorais nos EUA e o que muitos candidatos passam para conseguir chegar à vitória.

Posto assim, é quase um política para totós, um suporte para os jovens compreenderem de uma vez por todas como é que isto funciona.

Naturalmente que The Politician não é a primeira ou única série que o tenta fazer. Grande parte do sucesso de House of Cards foi essa sua capacidade de demonstrar realmente o que era necessário para ser Presidente. Não faltam tramas que descrevem todos os passos de campanha, todos os pormenores a que tomar atenção e as lutas e debates individuais pelos quais os candidatos e as suas equipas passam.

Só que The Politician é teen. E sendo teen, leva-nos também numa viagem à cabeça dos jovens eleitores que se estão a cagar para tudo isso e não compreendem a importância de um pequeno voto.

Vivemos num mundo complicado. Enquanto que uma parte da população luta todos os dias por um mundo melhor, mais amigo do ambiente, tolerante e aberto, a outra metade persiste em acreditar e pregar valores que pensávamos terem ficado destruídos no final da Segunda Guerra Mundial. Repleto de dicotomias e lugares cinzentos, este não é o mundo que idealizámos enquanto crescíamos, em paz e sossego.

Se bem que The Politician não entra tão profundamente no tema, não deixa de ser fruto desta incerteza e perda de deslumbramento. Hobart e a sua equipa eleitoral podem ter escolhas muito bem definidas, mas é claro que ao longo da história vemos como as suas crenças são abaladas, como as ideias daqueles que os rodeiam são tão diferentes, como estes jovens, que antes eram o futuro da nação, agora não querem saber porque tudo é demasiado complicado e demasiado impessoal para o seu gosto. E isso não é OK.

De uma forma muito descomplicada, esta é uma série que encontra em vários tópicos quase um reflexo de todos os estereótipos, todos os males que criamos na nossa cabeça, todas as incertezas que surgem quando enfrentamos uma decisão. E claro, tem o seu quê de romantismo e fantasia, como grande parte (se não todas) as coisas a que Ryan Murphy põe a mão.

Entre atores jovens e outros consagrados (não há como não adorar Jessica Lange e Gwyneth Paltrow, vá lá!), temos artistas da Broadway, televisão e cinema. Há pluralidade, o que só contribui para o dramatismo e exagero que toda a série tem, de alguma forma.

E não vale muito a pena entrarmos em grandes pormenores técnicos, porque apesar de entrarmos num ritmo e ambiente muito certos em cada um dos episódios (um deles realizado por Helen Hunt, curiosamente), é comum a tantos outros.

Como a série de uma forma geral, na verdade. Por muito que queira tentar dizer que não, The Politician não é a última bolacha do pacote. É mais uma série romanceada e fantasiada, mas que de alguma forma nos dá um pequeno vislumbre de uma sociedade mais focada na campanha política do que nas consequências e uma eleição para quem vota e fica deste lado. Chama a atenção pela estética, mantém-nos focados no romance e deixa-nos um pequeno desconforto quando vemos que os políticos são todos iguais.

O que há de novo, na verdade?

A lição que Joker nos dá, vista por uma amante de pipocas

08.10.19 | Maria Juana

Não, este não é mais um texto sobre Joker. Já escrevi sobre ele, mil pessoas já escreveram sobre ele e outras tantas postaram nas suas contas de Instagram como gostaram do filme e como o Joaquin Phoenix merece todos os Óscares do mundo - há quem vá mais longe e diga que é um melhor Joker que Heath Ledger. Hum.

A conclusão a que chegamos é que já muito foi dito sobre Joker. O que acho que não temos estado a falar com demasiado ênfase é como é que um realizador conhecido sobretudo pelas suas comédias conseguiu enganar o mundo inteiro a ir ver um filme sobre um suposto vilão de banda desenhada, quando na verdade é um filme sobre um homem doente.

Vamos recapitular.

 

 

Em várias fases da minha vida fui interpelada por pessoas que partilhavam a opinião de que a arte popular não é boa o suficiente para ser considerada arte. Se ouves música pop ou lês livros Young adult de fazer chorar as pedras da calçada, não sabes apreciar boa arte; se vês comédias românticas ou filmes de super-heróis só gostas de explosões e interpretações medianas. Concluindo, não fazes a mínima ideia do que é a verdadeira música, literatura ou cinema.

Estas pessoas, que tanto podem conviver connosco como escrever em sites culturais especializados, gostam de ditar esta ideia de que o indie é sempre melhor do que o popular. Seja porque é mais introspectivo, porque tem mais elementos a compô-lo, é mais profundo… Não estando totalmente longe da verdade (a complexidade de criação é, claro, um argumento interessante), é redutor e degradante para um público disposto a gastar algum dinheiro em cultura, algo que por sinal não é barato do nosso país. 

Ainda assim, tenho tendência a ignorar estas opiniões, porque olho para cada uma destas artes da mesma forma que olho para o vinho: se quiser apanhar uma bela bebedeira vou com certeza comprar a garrafa mais barata, mas sei apreciar como é que um Pera Manca é muito melhor do que a marca Pingo Doce.

Quando comecei este blog tinha precisamente o objetivo de desmistificar isto de que os filmes pipoca não são bons o suficiente para serem falados. Até porque eu não sou a maior fã de muitos dos mais elogiados filmes que saem dos festivais de cinema. Para mim, o cinema é sobre histórias e elas tanto podem ser dirigidas a um público específico que está preparado para as receber, como ser mais abrangente e encontrar ouvintes junto dos mais broncos, como eu.

A beleza de Joker é que tem agradado a todos. Aos intelectuais. Aos que gostam de filmes de super-heróis. Aos como eu, que gostam é da Arte.

Começou por ganhar um Leão no Festival de Veneza, proeza onde se encontram filmes tão diversificados e de tantas partes do mundo que blockbusters de Hollywood não costumam marcar presença. Já quebrou recordes de bilheteira e até arrancou uma opinião de 4 estrelas ao Público (e todos sabemos que, quando o Público gosta, o caldo está entornado).

Onde estão agora os intelectuais a dizer que não se pode fazer um filme como deve ser com uma campanha de marketing hollywoodesca bem feita?

Estão, como todos nós, surpreendidos. Joker é um filme do caraças e durante meses achámos que ía ser mais um filme falhado da DC. Não é. É na verdade um grande testemunho de como o comercialismo pode também originar conteúdo interessante e relevante e não apenas mais um filme com pipocas.

Não sei se era esse o intuito de Phillips quando idealizou o filme, mas esse é o Joker que temos: um testemunho de como um filme com mais camadas que uma cebola e um grau de perturbação gigante pode ser comercialmente atrativo. Se muitas pessoas vão ao engano? Depois de 3 dias nas salas, não me lixem: já todos devem saber ao que vão.

Opiniões radicais, como em qualquer ocasião, correm o risco de serem demasiado elitistas e redutoras. Se existem os radicais intelectuais, também existem os radicais broncos que continuam a achar que os Transformers são o melhor filme de sempre.

Mas sabem o que é que é lindo nesta vida?  É que não interessa. Façam o que quiserem e gostem do que quiserem. O que importa é que sejam felizes enquanto consomem cultura, e que um dia mais tarde tenham o discernimento e conhecimento para reconhecer que, às vezes, uma Pera Manca é apenas mais áspera para o nosso paladar e menos agradável do que um vinho do Pingo Doce.

Joker (2019) - Da comédia ao caos vilanesco

04.10.19 | Maria Juana

Sinopse: Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) é palhaço de profissão. Vive sozinho com a mãe. Sonha ser comediante. Mas Gotham é uma cidade de caos e confusão, que ignora os solitários. Arthur sente-se assim, até conhecer a sensação de ser visto e admirado. E encontra um novo caminho para a sua vida.

 

A maioria olha para o Joker apenas como o vilão do Batman; o palhaço que gosta de rir, dançar e matar pessoas em Gotham City. É o assassino excêntrico, aquele meio amalucado que podia parecer apenas doido, mas na verdade parece só ser má pessoa que mata sem passar e a rir à gargalhada. É o amante do caos. Foi assim o de Jack Nicholson. É assim o de Mark Hammill (ou a sua voz). Foram assim os de Jared Leto e Heath Ledger que, até à data de hoje, continua a ser um dos mais elogiados e extravagantes, loucos mesmo.

Mas hoje há um novo Joker. Um Joker ainda mais perturbado, negro e caótico do que qualquer outro. Hoje há a sua origem.

O filme de Todd Phillips é mais sobre Arthur, o homem solitário carregado de camadas e camadas de complexidade que vai encontrar uma vocação do caos. É Arthur o centro da história, a sua origem e tudo o que o levou a encontrar num cabelo verde e maquilhagem de palhaço o escape que precisava para ser verdadeiramente feliz.

Eu não sabia que tinha havido uma altura da existência de Joker que, não só era um menino da mama solitário, como ainda acalentava o sonho de ser comediante; queria fazer stand up. Já sabíamos, no entanto, que gostava de trazer sorrisos a cada alma - sejam eles metafóricos, reais ou apenas uma ironia no seguimento das suas ações.

O que este Joker consegue é mostrar-nos estas camadas e ligações que o transformaram no vilão dos vilões, de uma forma visceralmente desconcertante.

O que Todd Phillips e Joaquin Phoenix conseguiram foi um filme tão incomodativo que fica connosco. É duro, carregado de uma sensação de incómodo que ainda agora, horas depois de assistir ao filme, não consegui bem descrever. Não é asco, nem resistência em conseguir gostar; é antes uma comichão, daquelas que estamos a sentir mas sabemos que não podemos coçar - podemos não estar a conseguir lidar com o que estamos a ver, com a magreza de Arthur ou as situações em que se encontra, mas não conseguimos tirar os olhos do ecrã.

Há um ambiente propício a isso, que felizmente houve sempre em todas (ou quase todas) as representações de Gotham. É uma cidade escura e muito suja, com pessoas de moral questionável em cada esquina. É uma cidade de pecado e crime, de doenças mentais e conhecida pela sua capacidade de criar um novo doente mental a cada hora.

E as doenças mentais, se bem se recordam do mundo em que vivemos, ainda não são fáceis de digerir e, sobretudo aceitar. A dura realidade, a de Arthur e a deste mundo, é que a sociedade não aceita desvios.

Talvez o que custe seja este choque com a realidade, este paralelismo que conseguimos fazer entre o que acontece em Gotham e o que muitas vezes vemos acontecer à nossa porta. De entre todos os malucos que pegam numa pistola e começam a disparar pela rua fora, um deles não podia estar vestido de palhaço? Provavelmente.

O que incomoda também é a crueza com que Phoenix se torna neste Joker. Todos nos lembramos das versões anteriores desta personagem, das suas dimensões e facetas, só que Phoenix é toda uma nova roupagem. Ele é Arthur no seu pior, mas também é o Joker no seu pico de excentricidade. Ele ri, ele dança, ele convence-nos de que é este ser perturbado e demente que temos à nossa frente e confesso-vos, há um misto de pena, asco e admiração por aquilo que consegue. Não só transmitir-nos, porque isso é um trabalho dramático de um ator, mas sim naquilo que se torna.

Phoenix é o Joker no seu âmago. Viaja até ao centro das suas motivações e leva-nos com ele numa espiral de negatividade da qual não conseguimos fugir - e nem queremos, queremos ver o fim, o fundo do poço.

É incrível como a sua direção e o argumento da história vem de alguém que associamos por norma à comédia. Phillips, aqui no papel de realizador e co-argumentista, foi o homem que nos trouxe A Ressaca, a versão de 2004 de Starsky & Hutch, a história de Borat… Nos últimos anos, tem sido associado a um tipo de humor entre o non-sense e o inteligente, e com mestria tem conseguido criar enredos cómicos que nos prendem pelo seu caos.

Bem, esta era a minha primeira impressão. Mas enquanto escrevi este último parágrafo (e juro que foi no momento em que escrevi aquele parágrafo), nota-se tão bem como é que a sua visão é tão acertada para esta história. O Joker tem uma história de caos, mas também de comédia; ele quer fazer-nos rir mas não consegue, e quer ser visto mas não chama a atenção. O Joker é o espectro de tudo o que podia ter corrido mal… e correu.

Concluindo, Joker não é o filme de banda desenhada a que estamos acostumados, não existem capas esvoaçantes e discursos carregados de esperança pelo amanhã. É um filme duro sobre um homem perturbado e doente, que por acaso gosta de se vestir de palhaço. Os pequenos cameos? São isso mesmo, cameos para nos encher o olho e fazer abrir a boca de espanto.

Mas Joker é um filme à parte de todo o lore e corro o risco de dizer que o facto de se chamar Joker é mais marketing do que história. A personagem quase se torna uma desculpa para encararmos as consequências de uma sociedade que vira os olhos aquilo que acha mais desagradável, aos loucos e diferentes. E ainda bem, porque de filmes de banda desenhada já todos estamos fartos, não é? 

 

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